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Um blogue do professor Manuel Ramos

Jornal Referência Opinião

O “big brother”

 

Não! Este texto não vai falar sobre o “reality show” que está no ar pela TVI, em Portugal, e que é apresentado, atualmente, pela Teresa Guilherme!

Eu gostaria é de falar sobre a história da vida real, que está associada ao Covid-19 e que aparenta ser inspirada numa trama de ficção de George Orwell, publicada com o título “Nineteen Eighty-Four” (“1984” ou “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro” em português). Saiba o leitor que a trama desse livro é ambientada na Grã-Bretanha (onde é conhecida por “Pista de Pouso Número 1”) e narra a estória de um mundo em guerra contínua, no qual os habitantes são controlados por um regime político (totalitário) que persegue o individualismo e a liberdade de expressão enquanto “crimes de pensamento”… Para lograr sucesso nos seus intentos, o regime coloca todas as pessoas sob constante vigilância enquanto assume publicamente estar genuinamente preocupado com o bem-estar dos cidadãos, como se fosse um irmão mais velho, mais sábio e muito poderoso (“big brother”). Para isso, o governo referido na obra literária emitia mensagens públicas constantes e repetitivas com conteúdos que oscilavam entre o familiar/protetor, como por exemplo “o teu Grande Irmão (‘big brother’) zela por ti” e o controlador/ameaçador, como por exemplo, “o teu Grande Irmão (‘big brother’) está a observar-te”.

Em síntese, o governo retratado no livro assumia uma postura que, ao mesmo tempo que exigia algum respeito e «submissão por parte da população, procurava acalmar as dissidências e difundir a ideia de que é justo e protetor… Ainda no mesmo contexto, os altos níveis de vigilância mantidos pelo sistema político no poder, permanentes e sistemáticos, permitiam detetar rapidamente qualquer recusa dos cidadãos em acatar o que o regime determinava e penalizar os responsáveis de forma categórica…

Governos ditatoriais como os de Salazar, de Franco e de outros países que, no contexto da “guerra fria”, adotaram políticas semelhantes mostraram no passado que o que está representado nesse livro faz uma boa caricatura da realidade e foi (ainda é?) de facto vivida pelas populações…

Apesar de ter referido apenas exemplos já um pouco desfasados no tempo, todos conhecemos textos contemporâneos na Internet que apontam gigantes como o “Facebook” e a “Google” como autênticas máquinas de vigilância dos seus utilizadores. É possível encontrar na internet, inclusive, textos com acusações de que diversas informações podem (e são) captadas, tais como a atividade sexual dos utilizadores, o seu ciclo menstrual, a intenção de os utilizadores engravidarem, o hábito de beber café ou água ou mesmo o vício de fumar…

Para quê isso? Bem, Sun Tzu, que terá sido um general, estrategista e filósofo chinês que viveu mais de dois séculos antes de Cristo, referiu certa vez que, se conhecermos o nosso inimigo e a nós mesmos, venceremos todos os nossos combates. Este conceito sobreviveu aos séculos e ainda hoje continua válido enquanto estratégias comerciais (desenvolvidas por empresas como o “Facebook” ou a “Google”) e como estratégias políticas (como as que foram utilizadas pelo “big brother”)…

Efetivamente, a tarefa de vigilância e controle do “big brother” nunca foi tão facilmente realizada como agora… Quando acedemos à Internet, quando atualizamos o nosso perfil numa rede social, quando fazemos um telefonema, quando usamos uma «app» no telemóvel, quando ligamos a nossa TV ou quando passamos com o nosso carro por uma autoestrada com câmaras ou ainda pela portagem com a nossa “Via Verde”, deixamos um rastro que evidencia, para quem tiver acesso a essa informação, quem somos, o que gostamos, para onde vamos e o que queremos…

Essa reflexão traz-nos de volta ao tema que causou todas estas reflexões… A pandemia do Covid-19, que tem provocado, sem dúvida, imensas alterações no nosso estilo de vida, como o leitor sabe… Em Portugal, passamos por diversas fases desta pandemia e agora, com o surgimento de novos surtos, temos o incómodo de tornar a enfrentar uma fase difícil, caracterizada pela designação de “Estado de calamidade”. Neste contexto, várias são as medidas implementadas com a instauração desta nova fase de combate à pandemia…

Falar de todas elas seria cansativo e fugiria ao tema desta reflexão, pelo que gostaria de abordar apenas a proposta de lei feita pelo governo, que propõe, entre outras coisas, a instalação e utilização obrigatória da aplicação “StayAway Covid” em contextos laborais ou equiparados, escolares e académicos (com a previsão de multas no caso de falha na sua utilização)…

Como início de conversa, gostaria de referir que a aplicação mencionada foi criada há algum tempo e está disponível na PlayStore da Google como uma aplicação que se assume como sendo de utilização voluntária e gratuita e que visa a recolha de informação de uma forma simples e segura sobre exposições de risco à doença, através da monitorização dos contactos recentes do utilizador, para que possa alertar os seus utilizadores sobre os riscos dos contatos efetuados.

Como é óbvio, tal aplicação pode ajudar os seus utilizadores, pois serve de alerta para o risco de contágio da doença por exposição ao vírus. Na realidade, este tipo de aplicações foi alvo de recomendações por parte da Organização Mundial da Saúde e da Comissão Europeia, que consideraram que o desenvolvimento e a utilização de aplicações móveis de notificação da exposição individual a fatores de risco é recomendável (embora nada tenha sido referido quanto a ser indispensável).

Apesar disso, a aplicação “StayAway Covid” não cura a doença e tampouco impede o seu contágio… Também não serve para educar ou provocar melhorias nos hábitos de prevenção do contágio da população… apenas serve como tentativa de controle de quem foi exposto e como uma das possíveis estratégias de localização dos eventuais portadores do vírus não identificados pelo sistema de saúde por serem assintomáticos.

As desvantagens da obrigatoriedade da utilização dessa aplicação, todavia, são tantas e tão grandes que nem vou falar das eventuais questões de privacidade suscitadas pela própria existência da aplicação, pois acredito que foi elaborada, sem dúvida, com um objetivo específico e por pessoas bem-intencionadas.

Aliás, por falar nas questões de privacidade, para que seja possível aplicar multas, alguém terá de fiscalizar os telemóveis e esse alguém para o fazer terá de ter acesso ao mesmo, quebrando a privacidade da pessoa fiscalizada… Quem terá esse papel em cada contexto?

Outra questão é que serão criados dois grupos de pessoas: Os que podem ser fiscalizados e sujeitos a coimas por terem um aparelho capaz de instalar a aplicação que se sujeitarão a ter a sua privacidade invadida e os que não podem ser fiscalizados por alegadamente não possuírem um aparelho capaz de instalar a aplicação. Estes não estarão sujeitos a coimas e nem tampouco terão a sua privacidade invadida…

Para não criar estas distinções, quem sabe se, num futuro próximo, a próxima medida não seja a implantação de um chip subcutâneo que identificará as doenças transmissíveis de cada um de nós, remetendo-nos para a quarentena sempre que necessário… Tal como agora, os contatos que porventura tenhamos feito serão identificados, para que, tal como nós, também sejam internados numa quarentena… Dessa forma, será possível controlar doenças perigosíssimas, tais como a “Covid-19”, a “Gripe A”, o “Sarampo”, a “Varíola”, o “Ébola”, a “oposição ao governo”, etc…

Como teria escrito George Orwell: “Big Brother is watching you” (“o teu Grande Irmão está a observar-te”).

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